Diários de Bicicleta é uma síntese do livro com o mesmo nome, escrito por David Byrne ao longo dos últimos anos. Num estilo despojado que passeia entre ensaio, relato de viagens, diário pessoal e albúns de fotografia, David Byrne registra também suas reflexões sobre uma variedade de assuntos. O livro foi publicado no Brasil pela editora Amarilys.

quarta-feira, 26 de maio de 2010

Londres (III) - Vida no campo

David Byrne*
No caminho de volta ao hotel, atravesso de bicicleta o Hyde Park (foto). O sol está brilhando forte, o que é raro nesta cidade. Há várias pessoas passeando com o que me parecem ser cães de gente rica. Eu só encontro raças seletas pelas ruas: setters irlandeses amarelos, terries escoceses (brancos na maioria) e um ou outro galgo. Quase nenhum outro membro do mundo canino pode ser visto. O mesmo serve para as pessoas - só algumas poucas espécies parecem andar pelo parque.
Passo pelo que suponho ser uma senhora de classe alta com seus filhos. Ela está com um traje completo - casaco de caça verde, calça bege e botas Wellington. Será que ela está planejando uma tarde radical? Achar uma área mais macia no gramado para afundar as botas na lama? Caçar alguns dos patos ou gansos do parque? (As cores que ela está usando serviriam como uma ótima camuflagem.) Os filhos dela também estão vestidos para um "passeio no campo". Versões em miniatura da mamãe. É incrível como embora estejam no meio de uma das maiores cidades do mundo, elas ainda possam fingir para si mesmos que estão no alto das montanhas escocesas. Bom, nem tanto - nós sabemos que aquí, mais do que na maioria dos outros lugares, as roupas servem como indicação da sua classe social.
Depois de almoçar no hotel, saio de novo, desta vez pelo calçadão ao longo da margem norte do rio até chegar a Torre da Ponte, que está cheia de turistas, onde eu sigo pelo sul sobre a ponte até uma pequena ruia lateral onde fica o Museu de Design. Tom Heatherwich é curador da Conram Foundation Collection Show, exposição instalada com maestria, hilária e emocionante. A exposição é composta por trinta mil libras - o orçamento do projeto - das coisas mais estranhas que ele conseguiu reunir; algumas são obras de alto design, mas a maioria não. O interessante é que esse projeto não tem nada a ver com a loja Conran, a não ser pelo fato de que Sir Conran faz parte do conselho do museu e patrocina esta exposição em particular...
Depois de ver a exposição, tomo chá com a (agora ex) diretora do Museu de Design, Alice Rawsthorn, que consegue entrar em sérias discussões filosóficas mais rápido do que qualquer outra pessoa que eu já conhecí. Ela logo me perguntou se eu já tinha conhecido alguém realmente interessante entre os jornalistas que me entrevistaram nos últimos tempos. Respondí comentando uma ideia que me ocorreu em relação à imagem das pessoas criativas, especialmente artistas como eu.
O público tende a pensar que o trabalho criativo é a expressão de um desejo ou paixão pré-existente, uma sensasão que se manifesta, e de certa forma, isso até é verdade. Como se um violento rompante de paixão, fúria, amor, sofrimento ou desejo dominasse o artista ou compositor, como poderia acontecer com qualquer um de nós, mas com a diferença de que os artistas não tem outra alternativa a não ser expressar esses sentimentos através de algum meio criativo...
O trabalho criativo é na verdade semelhante a uma máquina que escava e encontra coisas, elementos emocionais que servirão algum dia como matéria prima para que mais coisas sejam produzidas, coisas como ela mesma - uma argila disponível para usos futuros.
* David Byrne, músico, fotógrafo e escritor, nasceu na Escócia e vive em Nova York desde o final da décda de 70. Utiliza a bicicleta como meio de transporte em suas viagens pelo mundo. Escreveu Diários de Bicicleta, Editora Amarilys. (pag. 216)

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