Diários de Bicicleta é uma síntese do livro com o mesmo nome, escrito por David Byrne ao longo dos últimos anos. Num estilo despojado que passeia entre ensaio, relato de viagens, diário pessoal e albúns de fotografia, David Byrne registra também suas reflexões sobre uma variedade de assuntos. O livro foi publicado no Brasil pela editora Amarilys.

terça-feira, 25 de maio de 2010

Londres (II) - A polícia interior

David Byrne*
Pela manhã, pedalo rumo ao leste, saindo do hotel em Shepherd’s Bush e atravessando a cidade até a Galeria Whitechapel, onde tenho uma reunião com Iwona Blazwick, a diretora, sobre uma possível conversa mais séria depois do outono. Isso me faz passar mais ou menos em linha reta por Londres, de leste a oeste, ao norte do rio Tamisa. Eu poderia ter ido por uma avenida de várias faixas que vai até lá (de Westway até Marylebone Road e Pentonville Road – que são todas a mesma avenida na verdade), mas prefiro passar pelos pontos mais famosos da cidade, coisa que, segundo Henriette Mortensen, da Gehl Architects, um grupo dinamarquês de consultoria e planejamento urbano, é uma espécie comum de instinto urbano. Ela me disse que em certas partes de Nova York há pouquíssimos pontos reconhecíveis, o que deixa as pessoas um pouco desnorteadas às vezes. Não que elas fiquem totalmente perdidas – embora isso possa acontecer com turistas – mas o nosso limitado senso instintivo de localização exige mais referências em algumas áreas. Em várias cidades, esses marcos são prédios famosos, pontes e monumentos. Um arco do triunfo, uma velha estação de trem ou uma praça com uma torre ou uma igreja no meio são exemplos comuns. Em diversos lugares, tudo isso foi construído em épocas de prosperidade, o que me faz pensar se os arranha-céus de aço e vidro que estão surgindo por toda parte agora – alguns com formas malucas, parecidos com picles ou pirâmides de ângulos agudos – algum dia serão vistos pelas gerações futuras como os marcos charmosos que dão identidade às suas cidades. Será que no futuro esses bizarros monólitos de aço e vidro espelhado poderão causar o mesmo impacto que a Torre Eiffel, o Zócalo e o Arco de Mármore causam hoje?
Meu caminho passa pelo Hyde Park, o Arco de Mármore, o Palácio de Buckingham, Picadilly Circus, a região dos teatros e o Mercado de Spitalfieds. Não é a rota mais curta até Whitechapel, mas zanzar de um marco histórico a outro me dava a sensação de estar em um gigantesco jogo de tabuleiro – e era muito gratificante. Cada marco fica bem perto um do outro, então a jornada rumo ao meu destino era como uma série de passos gigantes.
Assim que eu chego, nós conversamos tomando chá e Iwona me fala que esteve há pouco tempo no Irã para visitar alguns dos artistas de lá. Ela me conta que a maioria deles é surrada regularmente por agentes do governo e que eles já incorporaram isso aos seus estilos de vida e à forma de se vestirem, usando seis calças nos dias em que serão espancados.
Não por acaso, o rumo da conversa volta-se então para as sociedades patriarcais, e ela comenta que as sociedades que dividem os sexos às vezes fazem isso para encorajar a violência e a agressão para que as pessoas sejam mais belicosas.
Em dado momento, para exemplificar essa idéia de que pessoas oprimidas se tornam opressoras, ela menciona a agressividade da dominação de Israel sobre os palestinos e o comportamento agressivo dos israelenses como se isso fosse um fato incontestável. Eu não discordo totalmente, mas fico surpreso por ouvir isso sendo dito assim tão abertamente. Nos EUA, e ainda mais em Nova York, existe uma censura interna não muito sutil que cerceia declarações como essa. As pessoas nunca fazem comentários deste tipo, e, se fazem, são alvo de olhares reprovadores ou acusações de anti-semitismo.
Eu me pergunto quantos outros aspectos do pensamento norte-americano também sofrem essa autocensura. Vários imagino eu. Toda cultura precisa ter suas zonas proibidas.
* David Byrne nasceu na Escócia e mora em Nova York desde o final dos anos 70. Fez parte da banda cult dos anos 80 , Talking Heads. Viaja pelo mundo com sua bicicleta desmontável e escreveu o livro " Diários de Bicicleta" , fonte deste blog. 

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